O acesso à água segura e ao esgotamento sanitário é, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), um direito humano fundamental e, dessa forma, deve ser garantido a todas as pessoas, sem discriminação. Mas, segundo o relator especial da ONU sobre esses direitos, Léo Heller, tais recursos não estão disponíveis da mesma forma para homens, mulheres e outras identidades de gênero. Heller, que também coordena o Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas e Saneamento da Fiocruz Minas, acaba de elaborar o relatório “Igualdade de gênero e direitos humanos à água e ao esgotamento sanitário”, no qual destaca que as disparidades em relação a essas prerrogativas acirram outras desigualdades.
O documento aponta uma série de aspectos relacionados a esses direitos em que as mulheres aparecem em situação de desvantagem. Um deles, verificado em quase todas as localidades onde há falta ou má distribuição de serviços de saneamento, é atribuir a elas a tarefa de coletar água para manter a higiene do lar. Segundo o relator, tal situação leva a vários outros problemas.
“Mulheres e meninas ficam geralmente com a responsabilidade de limpar a casa e, quando não há água disponível, têm que buscar em algum lugar. Isso subtrai delas um tempo que poderia estar sendo empregado em educação e em atividades remuneradas. Tal situação reforça a dependência econômica com homens, interferindo, inclusive, na capacidade delas de pagar por serviços de água e esgotos”, explica.
A questão traz ainda outras dificuldades. Meninas e mulheres também experimentam o stress psicossocial, causado pelo medo da violência sexual, bem como de serem atacadas por animais, como cobras e mosquitos, durante a atividade de transportar a água. De acordo com o relatório, esses riscos aumentam em lugares onde, além da falta de água, não há rede de esgoto e banheiros residenciais, fazendo com que as pessoas tenham que urinar e defecar ao ar livre.
Espaço público- Em muitos países, a falta de instalações sanitárias adequadas em espaços públicos também coloca as mulheres em desvantagem. De acordo com o relatório, muitas delas deixam de frequentar a vida social e até mesmo a escola, especialmente no período menstrual, quando precisam de espaços mais apropriados para fazerem a higiene íntima.
“Até mesmo quando há instalações sanitárias, é possível perceber que as mulheres estão em situação desvantajosa, uma vez que os estabelecimentos públicos contam com o mesmo tipo e mesma quantidade de banheiros masculinos e femininos. Entretanto, as mulheres levam mais tempo e necessitam de instalações apropriadas, principalmente quando estão no período da menstruação”, observa Heller.
Além da vida social, a saúde é outro aspecto afetado. Relatos apontam que, por falta de espaços adequados, muitas mulheres costumam segurar a urina por longos períodos de tempo, o que pode aumentar o risco de infecções de bexiga e rins. Além disso, entre elas, há quem deixe de ingerir líquidos para evitar idas ao banheiro.
A inadequação dos espaços públicos atinge não apenas as mulheres, mas também transgêneros que, ao usarem instalações sanitárias separadas pelo sexo biológico, ficam expostas a agressões morais e físicas. Estudos realizados na Índia revelam que os transexuais enfrentam dificuldades em encontrar casas para alugar, sendo forçados a viver em favelas e áreas remotas, com sérios problemas de esgotos e distribuição de água.
Outro grupo atingido é a população em situação de rua. Em Belo Horizonte, por exemplo, um estudo que vem sendo realizado pelo grupo coordenado por Léo Heller mostra que os albergues e as unidades de acolhimento -espaços que contam com instalações sanitárias- não dão conta do número de pessoas sem moradia. Embora a maior parte desse público seja composta por homens, são as mulheres que mais sofrem com a falta de privacidade.
“Nas entrevistas que fazemos, os próprios homens salientam que as mulheres passam por mais dificuldades. O principal problema apontado é a falta de privacidade para a realização de atividades básicas, como tomar banho, urinar e defecar”, afirma Priscila Neves, doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Fiocruz Minas. Também nesse grupo, além das mulheres, a população homoafetiva está entre os que declaram se sentir mais vulnerável.
Recomendações- De acordo com Heller, as desigualdades apontadas no relatório estão presentes em boa parte dos países. Ele destaca que o combate a essas disparidades deve passar, primordialmente, pela participação do público feminino e demais identidades de gênero nas esferas de decisão e planejamento. Para o relator, a participação é não apenas um direito em si, mas ainda um imperativo para se colocar em prática outros direitos.
“As políticas e leis que versem sobre água, esgotos e higiene devem contar com a participação dinâmica e efetiva das mulheres e outros grupos afetados. Entretanto, não basta apenas ter essa representação, mas garantir que a voz dessas pessoas seja levada em consideração”, destaca. Segundo ele, países que seguiram essa estratégia tiveram resultados exitosos, comprovando que esse pode ser o caminho.
“El Salvador é um desses casos em que mulheres foram envolvidas no planejamento das ações e, desde então, perceberam-se melhorias significativas no que se refere ao acesso à água na área rural”, conta.
Para o relator, também é necessário que as diferenças entre homens, mulheres e outras identidades de gênero estejam expressamente mencionadas nas políticas e estratégias de combate à desigualdade. A ideia é evitar que documentos aparentemente neutros possam esconder essas diferenças e beneficiar algumas pessoas em detrimento de outras.
Veja o relatório na íntegra.