Entre 2014 e 2020, o pesquisador da Fiocruz Minas Léo Heller atuou como relator especial das Nações Unidas sobre os direitos humanos à água e ao saneamento. Durante esse período, visitou nove países em cinco continentes, onde conversou com cidadãos comuns, representantes de Organizações Não Governamentais (ONGs), governantes nacionais e locais, representantes de entidade ligadas à ONU, entre outros públicos. Com base no que viu e ouviu, redigiu relatórios em que analisou a realidade de cada país, buscando compreender por que alguns grupos ainda estão excluídos desses direitos. Além das visitas, apresentou doze relatórios à Assembleia Geral das Nações Unidas e ao Seu Conselho de Direitos Humanos, cobrindo diferentes aspectos desses direitos. Agora, todo o conteúdo produzido a partir dessa experiência está reunido no livro The Human Rights to Water and Sanitation [Os Direitos Humanos à Água e ao Saneamento], publicado pela Editora da Universidade de Cambridge. São 450 páginas, apresentando uma análise abrangente e inédita, ao trazer diferentes enfoques, que inclui questões teóricas, jurídicas e políticas envolvidas.
O livro está estruturado em quatro partes. A primeira faz um levantamento histórico, fornecendo os elementos que permitem enxergar as bases para que o acesso à água e ao saneamento se constituísse um direito humano fundamental. O pesquisador também buscou na literatura sobre o tema as controvérsias acerca da questão, procurando dialogar com as vozes discordantes. Engenheiro civil de formação, Heller usa ainda os conhecimentos da engenharia para explicar conceitos importantes para a garantia do direito ao acesso à água e ao saneamento, como disponibilidade, acessibilidade física e qualidade. Na segunda parte, são discutidos os fatores, principalmente externos ao setor de água e saneamento, que moldam as políticas públicas e explicam por que alguns grupos não conseguem ter acesso aos serviços. Já na parte três, são abordadas as políticas públicas voltadas para a garantia desses direitos. A quarta parte trata sobre as populações e esferas de vida que têm sido negligenciadas nos esforços para promover o acesso aos serviços.
“Ao fazer as análises, trabalhei com três dimensões: determinantes, políticas e pessoas. Para cada uma delas, fui mostrando o que favorece os direitos humanos e o que exclui: as macropolíticas que determinam, as políticas que podem beneficiar ou não o acesso, bem como os grupos populacionais que são mais discriminados”, explica o pesquisador.
Realidades diversas, problemas diferentes- No decorrer dos seus dois mandatos como relator, Heller esteve no Tajiquistão, Mongólia, Malásia e Índia, localizados na Ásia; em Botsuana e Lesoto, situados na África; em El Salvador, na América Central; no México, que fica na América do Norte; e em Portugal, na Europa. Segundo o pesquisador, são países com situações bastante distintas, mas todos eles apresentam problemas relacionados à garantia do direito a água e ao saneamento.
“Na África, os países visitados são muito rurais, e essas áreas rurais são poucos assistidas. Na América Latina, mais urbanizada, há muitas vilas e favelas, locais que sofrem a violação do direito de acesso aos serviços. E, mesmo em países desenvolvidos, como é o caso de Portugal, temos populações desassistidas; visitei um assentamento de população cigana, com vários problemas em relação a esses direitos”, conta Heller.
Outro aspecto que chama atenção e faz parte das discussões presentes no livro é a constatação de que água e saneamento não estão acessíveis de forma equivalente para homens, mulheres e outras identidades de gênero. Segundo o pesquisador, percebe-se uma discriminação de gênero muito forte, com acesso precário a banheiros. “Na Malásia, por exemplo, muito tradicional e com questões religiosas fortes, me reuni com grupos LGBTQIA+, que relataram problemas dos transgêneros para uso de banheiro, com a exigência do governo de que as pessoas usem as instalações indicadas para o sexo que consta em sua certidão de nascimento”, revela.
O livro também aborda a questão dos megaprojetos, como a mineração, que esgotam os recursos hídricos de uma região e levam as pessoas a saírem de seus territórios. Traz ainda uma discussão sobre as esferas de vida para além do domicílio, mostrando a situação de pessoas que estão morando na rua ou que trabalham, como os ambulantes.
“É um livro pioneiro no Brasil, devido aos diferentes enfoques abordados. Há publicações que tratam de aspectos específicos, como a questão jurídica ou algum outro elemento. Mas essa compilação com várias abordagens é inédita. Por isso, a expectativa é que interesse ao público que lida com as duas temáticas centrais, ou seja, direitos humanos e acesso à água e saneamento, bem como a pessoas que trabalham com as outras temáticas abordadas, como a discriminação de gênero, impactos da mineração, entre outras”, afirma Heller.
A publicação pela Editora Cambridge é oferecida em idioma inglês, mas, em breve, o livro ganhará uma versão em português, a ser publicada pela Editora Fiocruz. Também está em planejamento uma versão em espanhol.