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Zigman Brener nasceu em São Paulo, no dia 07 de setembro de 1928. O simbolismo de data de seu nascimento, dia da Independência do Brasil, nos faz refletir sobre como a longa atuação do cientista, na pesquisa e na docência, ajudaram a solidificar outro tipo de autonomia nacional, a da ciência brasileira.
Oriundo de uma famÃlia judia, Brener mudou-se para Belo Horizonte na infância. Cursou medicina na Faculdade de Medicina da Universidade de Minas Gerais, graduando-se em 1953. Seu contato com a pesquisa ocorreu ainda na graduação, quando participou de investigações sobre a doença de Chagas sob a supervisão do cientista José Pellegrino. O trabalho versava sobre o risco de transmissão da patologia por meio de transfusão de sangue, já que pessoas contaminadas compareciam ao banco de sangue para fazer doações. “É interessante notar que os 3 candidatos nos quais conseguida a comprovação parasitológica […] estavam há muito tempo seguramente afastados do contato com triatomÃneos, pois residiam em Belo Horizonte há 18, 19 e 21 anos. […] revela o perigo que pode representar um doador com doença de Chagas, caso não seja feita a conveniente exclusão desta infecçãoâ€.[1] Esse trabalho, coordenado por Pellegrino teve importante repercussão, marcando a estreia de Zigman Brener no campo da parasitologia.
Em 1954 o jovem profissional decidiu dedicar-se à ClÃnica Médica, carreira com a qual não se identificou. Brener foi “salvo†por Amilcar Vianna Martins, professor da Universidade de Minas Gerais, que lhe ofereceu posição de assistente na Cátedra de Parasitologia da Faculdade de Farmácia da universidade. Nesse perÃodo, Amilcar Martins também assumiu a direção do Instituto Nacional de Endemias Rurais, e com a inauguração do Centro de Pesquisas de Belo Horizonte (CPBH) (atual Instituto René Rachou), ele convidou Zigman Brener a integrar a equipe de pesquisadores do CPBH.[2] Assim, o cientista dividia o seu tempo entre duas instituições de pesquisa, as Faculdades de Farmácia e de Medicina da UMG e o CPBH. Naquela época, vários profissionais exerceram essa dupla função, o que, na opinião do próprio Brener, provou-se muito importante: “Eu acho que o sucesso da parasitologia aqui em Belo Horizonte, de modo geral, se deve a esse acordo entre a universidade e essa instituiçãoâ€.[3]
Já no inÃcio da carreira, o nome do Z. Brener se destacava como cientista promissor. Em 1957, a Revista Brasileira de Malariologia e Doenças Tropicais noticiou que ele “defendeu brilhantemente†sua tese de doutorado,[4] intitulada Calazar Canino em Minas Gerais. O pesquisador ampliava assim a sua área de atuação, marcada por estudos sobre a doença de Chagas, Esquistossomose e Leishmaniose. Sua parceria com o antigo mestre, José Pellegrino continuou por muitos anos. Um dos momentos mais importantes desse trabalho conjunto ocorreu quando os dois cientistas realizaram, a convite do laboratório Hoffmann-La Roche, residência na SuÃça, com o fim de pesquisar a quimioterapia de doenças parasitárias e protocolos para o teste de substâncias e medicamentos.[5]
A partir de então cada pesquisador concentrou-se em um campo de atuação, José Pellegrino na esquistossomose e Zigman com a doença de Chagas. Brener fundou, em 1960, o Laboratório de Doenças de Chagas do CPBH.[6] Ali ele desenvolveu, ao longo da vida, pesquisas que tiveram ampla repercussão no meio cientÃfico mundial, como: “verificação, em co-autoria com Dr. Naftale Katz, da involução das formas graves de pacientes esquistossomóticos […] a descoberta, em parceria com a Dra. Antoniana Krettli, do anticorpo lÃtico, que permitiu aumentar a sensibilidade de diagnóstico de cura da doença de Chagas […] e o teste, em colaboração com pesquisadores americanos, de cerca de seiscentas drogas para tratamento da doença de Chagas, o primeiro a evidenciar a eficácia de um dos únicos medicamentos hoje utilizados com sucessoâ€.[7]
Em paralelo com essa intensa atividade de pesquisa, Brener exerceu a docência na UFMG e orientou, também no Instituto René Rachou (IRR), muitos estudantes de iniciação cientÃfica, mestrado e doutorado, influindo na formação de pessoas como: “Antoniana Krettli, Egler Chiari, Bruno Schlemper, Nelson Alvarenga, Leny Filardi e Lúcia Galvãoâ€.[8] Com a criação do Instituto de Ciências Biológicas (ICB) da UFMG, em 1968, ele foi responsável, em conjunto com outros professores, pela fundação do Departamento de Parasitologia. O curso de mestrado foi criado em seguida, sendo Zigman Brener seu primeiro coordenador e encarregado da disciplina de Protozoologia.[9] Ali ele construiu uma carreira de sucesso, que culminou com os tÃtulos de Professor Titular e Emérito da instituição. Além disso, Brener exerceu cargos de consultaria cientÃfica, como no Programa de Pesquisa em Doenças Tropicais da Organização Mundial da Saúde (OMS). Foi Presidente do Steering Committee on Chagas Disease da OMS (1977-1984),[10] tendo, também, ocupado a diretoria do IRR entre 1977 e 1985. Atuou em conselhos de órgãos de pesquisa, como no Conselho Nacional de Desenvolvimento CientÃfico e Tecnológico (CNPq) e na Financiadora de Estudos e Projetos (Finep).
- Brener foi pesquisador titular do IRR, e hoje a biblioteca da Instituição leva seu nome. Ele integrou diversas sociedades cientÃficas, sendo membro fundador da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical e membro titular da Academia Brasileira de Ciências. Foi agraciado com diversas honrarias, dentre as quais: Prêmio Samuel Pessoal, em 1998, como destaque na área da Protozoologia; Medalha Universidad de Caracas, 1969; Ordem Nacional do Mérito CientÃfico, da Presidência da República, classe Grã-Cruz, 1994; Honra ao Mérito da Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais (Fapemig), em 1996.[11] Essa honraria deve ter tido um sabor especial para o pesquisador, pois no ano de 1987, devido a uma intervenção polÃtica, quase todos os integrantes do conselho curador da Instituição foram destituÃdos, inclusive Zigman Brener. O fato ocorreu após a posse de um novo governador no estado de Minas Gerais que, à revelia da comunidade cientÃfica, destituiu os conselheiros, sem maiores explicações. Porém, conforme noticiaram os jornais da época, o episódio gerou forte reação dos pesquisadores brasileiros, que saÃram em defesa da autonomia cientÃfica da fundação e da reputação dos atingidos: “A comunidade cientÃfica mineira ameaça fazer um “estardalhaço nacional†se o governador Newton Cardoso mantiver a “cassação do mandato†do diretor cientÃfico e dos 12 membros do conselho curador da Fapemigâ€, dentre os quais figuravam “Amilcar Vianna Martins e Zigman Brenerâ€.[12] A pressão foi grande, com a mobilização dos pares em todo o paÃs, de tal forma que o governador voltou atrás em sua decisão e reconduziu os conselheiros à s suas funções, pelas quais não recebiam qualquer remuneração.[13]
Essa não foi a primeira vez que Zigman Brener foi atingido por ingerências polÃticas. Na efervescência da Segunda Guerra Mundial e em plena repressão polÃtica do Estado Novo, Brener filiou-se ao Partido Comunista Brasileiro, onde militou por muitos anos,[14] fato que décadas depois repercutiria em outro momento histórico do paÃs, quando do golpe militar de 1964. O médico sempre se preocupou com a situação social do paÃs. Durante a XI reunião da Sociedade de Medicina Tropical, ao discorrer sobre a doença de Chagas, ele apontou outro efeito nefasto da condição: “muitas empresas despedem os operários afetados pela doença e esses homens se tornam, então, marginalizados no processo de produçãoâ€.[15] Declarações como essa, somadas à sua antiga militância no Partido Comunista, colocaram-no no radar do sistema de perseguição polÃtica orquestrado pela ditadura militar. Por ordem do chefe do Departamento de Vigilância Social foi montado um dossiê sobre o pesquisador. Todas as ações de Z. Brener, consideradas subversivas, foram registradas: “Antecedentes: Em março de 1949, subescreveu […] o manifesto de convocação para o Congresso Mineiro de Defesa da Paz (movimento de inspiração comunista). Conforme o jornalzinho de estudantes de medicina “Sarcoptes†[…] fazia parte do Conselho de Redação do referido folheto de tendências subversivas […] participação ativa, de Zigman Brener, na primeira sessão plenária do VIII Congresso Estadual dos Estudantes […] novembro de 1954, participou da reunião dos médicos, que, junto com dois comunistas médicos […] discursaram, em favor da greve dos médicos […]â€.[16] Assim, atividades que hoje são corriqueiras, próprias de uma democracia, como participação em reuniões públicas, reivindicações trabalhistas e organização polÃtica, eram vistas como ameaças à ordem nacional. Ao longo da ditadura militar todos os passos do pesquisador foram registrados, constando, nos arquivos da Secretaria do Estado da Segurança Pública de Minas Gerais, até mesmo o número do seu passaporte e as ocasiões em que viajou para o exterior.
O cientista, falecido em 2002, foi um dos maiores nomes mundiais no campo da Doença de Chagas. No ano de 2020, a revista Plos Biology publicou estudo indicando os cem mil cientistas mais influentes do mundo. Dentre os seiscentos brasileiros citados consta o nome de Zigman Brener,[17] demonstrando que suas pesquisas continuam impactando a produção cientÃfica atual. Em conjunto com a extraordinária carreira do pesquisador, destaca-se a sua consciência social. Ao fazer um balanço de vida, Brener confirmou que sempre teve preocupação com a realidade brasileira: “o professor AmÃlcar, eu mesmo, éramos engajados, sem dúvida nenhumaâ€. Zigman Brener cultivava a “indignação†pelas condições socioeconômicas precárias em que vivia a população pobre do Brasil, por essa razão ele acreditava na integridade das boas ideias, sociais e cientÃficas, afirmando: “Eu acho que a pessoa não deve abrir mão dos seus princÃpiosâ€.[18]
Projeto Memória. Trajetória histórica e cientÃfica do Instituto René Rachou – Fiocruz Minas.
Coordenadores: Dr.ª Zélia Maria Profeta da Luz; Dr. Roberto Sena Rocha.
Historiadora: Dr.ª Natascha Stefania Carvalho De Ostos.
Texto de: Natascha Stefania Carvalho De Ostos
[1] PELLEGRINO, J. et al. Inquérito sôbre a Doença de Chagas em candidatos a doadores de sangue. Mem. Inst. Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, v. 49, p. 557-564, mar. 1951 , p. 560.
[2] GAZINELLI, Giovanni. Professor Zigman Brener. Rev. Soc. Bras. Med. Trop., v. 36, n. 1, p. 133-136, jan. 2003.
[3] BRENER, Zigman. Depoimento. In: KLEIN, Lisabel et al. Inovando a tradição: Zigman Brener e a parasitologia no Brasil. Rio de Janeiro: Casa de Oswaldo Cruz; Belo Horizonte: Centro de Pesquisas René Rachou, 2003, p. 114.
[4] Noticiário – Defesa de Tese de Doutoramento do Dr. Zigman Brener. Revista Brasileira de Malariologia e Doenças Tropicais, Rio de Janeiro, vol. X, n.1, jan. 1958, p. 111.
[5] GAZINELLI, Giovanni. Professor Zigman Brener. Ibidem.
[6] FIOCRUZ. Laboratório de Doença de Chagas. In: Centro de Pesquisas René Rachou. A fundação Oswaldo Cruz em Minas Gerais. Belo Horizonte: CPqRR, 2000, p. 6-7.
[7] SCHALL, VirgÃnia. Uma história do Zigman Brener. Contos de Fatos: Histórias de Manguinhos. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz, 2001, p. 86.
[8] COURA, J. Rodrigues. Zigman Brener (7/9/1928 – 23/9/2002). Mem. Inst. Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, vol. 97(7), out. 2002, p. 916.
[9] MAYRINK, Wilson. Breve Histórico. Departamento de Parasitologia. In: COSENZA, Ramon Moreira (org.). ICB 30 anos. Memórias do Instituto de Ciências Biológicas da UFMG. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998, p. 216.
[10] ABC. Zigman Brener. Membros. Academia Brasileira de Ciências. DisponÃvel em: <http://www.abc.org.br/membro/zigman-brener/>.
[11] KLEIN, Lisabel et al. Inovando a tradição: Zigman Brener e a parasitologia no Brasil. Ibidem, p. 153.
[12] Comunidade cientÃfica mineira ameaça Newton com protesto nacional. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 15 abril 1987, p. 9.
[13] BERALDO, Wilson Teixeira. Entrevista concedida a Lineu Freire-Maia (Instituto de Ciências Biológicas, UFMG) e Marise Muniz (Ciência Hoje). Publicada em out. 1990. DisponÃvel em: <http://www.canalciencia.ibict.br/notaveis/livros/wilson_teixeira_beraldo_55.html>.
[14] KLEIN, Lisabel et al. Inovando a tradição: Zigman Brener e a parasitologia no Brasil. Ibidem, p. 12.
[15] Doença de Chagas prolifera na Guanabara e em São Paulo. A luta democrática: Um jornal de luta feito por homens que lutam pelos que não podem lutar. Rio de Janeiro, n.6447, 27 fev. 1975, p. 5.
[16] Secretaria do Estado da Segurança Pública de Minas Gerais. Departamento de Vigilância. Belo Horizonte. Pasta 507. Certidão, 12 dez. 1967.
[17] IOANNIDIS, John P. A., BOYACK, Kevin W., BAAS, Jeroen. Updated science-wide author databases of standardized citation indicators. PLoS Biol., 18(10), 2020.
[18] BRENER, Zigman. Depoimento. Ibidem, p. 135, p. 137.